quinta-feira, 9 de julho de 2009

Memórias de um tempo salazarento (1)

O António Horta Pinto, do Ponte Europa, um dos meus blogs de referência, encontrou no seu Dossier da Pide, uma carta de 1965 em que ele e outros amigos de Coimbra enviavam à secção "Factos e Documentos", da Seara Nova, extractos de um discurso de um deputado salazarista na Assembleia Nacional, que louvava a militância dos comunistas - ó sacrilégio! ó santa ingenuidade! - para apelar a um maior empenho cívico dos adeptos da situação.

Vejam sobre o assunto os textos do ahp e do Carlos Esperança, que valem a pena! Por mim digo e repito que era da parte daquele deputado da União Nacional, partido único, um sacrilégio e uma ingenuidade, porque, lembro-me perfeitamente, naquele tempo até o vocábulo "comunista" estava banido dos jornais, a não ser para noticiar, e discretamente, as condenações que se sucediam nos tribunais plenários. E lembro-me perfeitamente da emoção e do júbilo com que recebíamos em todos os números da Seara Nova a rubrica "Factos e Documentos", alimentada essencialmente por citações, sem o mínimo comentário, de extractos de discursos das mais altas personalidades do Regime, em especial de Américo Tomás.

Os coronéis da Censura tinham dificuldades em censurar uma citação exacta e não comentada de um dignitário oficial em funções. E a malta, que não via televisão, que não lia o Diário de Notícias, juntava-se na Cantina para ler, em voz alta, as citações da Seara Nova. As gargalhadas deviam ouvir-se no gabinete do Reitor Paulo Cunha, no outro edifício, a 300 metros dali. Os discursos do Tomás eram assim como as reflexões do Diácono Remédios, na fabulosa criação do Herman José.

Sim, é verdade, como eles interceptavam a correspondência! E com que despudor! Lembro-me que em 63 ou 64, na Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, estávamos obrigados a votar uma alteração dos estatutos, para a qual a entidade homologadora, o Ministro, exigia a comparência de um número altíssimo de sócios na Assembleia Geral. Era uma tarefa quase impossível sobretudo porque havia muitos sócios que eram alunos voluntários, trabalhavam, e só de longe a longe passavam pela Faculdade.

Mobilizámo-nos, tentámos telefonar a toda a gente, mas muitos sócios nem tinham telefone nas casas em que viviam, se é que ainda viviam nos endereços que tínhamos nas fichas. Decidimos, ainda assim, enviar cartas, fechadas, em envelopes normais e sem remetente, para dificultar eventuais apreensões. Repito que estávamos apenas a convocar uma assembleia legal para legalmente alterar um artigo ou dois dos estatutos, nada de particularmente subversivo.

Como última precaução - foi ideia minha e supunha que brilhante! - dividimos as cartas a enviar entre nós e fomos espalhá-las por todos os marcos do correio, da Cidade Universitária ao Saldanha, convencidos que com essa dispersão conseguíamos que ao menos algumas chegariam aos destinatários.

Pois não chegaram. Verificámos mais tarde que nenhum dos sócios, a que foram enviadas as convocatórias, as tinha recebido. Os estupores dos pides, nos CTT, devem ter adivinhado a jogada: detectaram, apreenderam e destruíram cartas legalíssimas, entre uma Associação e os seus sócios, a avisar do interesse e necessidade de virem a uma assembleia geral.

Mas lixaram-se. É que, apesar de todas as sabotagens, conseguimos reunir no dia e hora aprazados o número necessário de sócios. As alterações foram discutidas e votadas, sem problemas de maior, que os estudantes de Direito afectos ao Regime eram poucos, embora especialmente agressivos, tinham as costas quentes.

Iam de matraca para as reuniões de estudantes, que a RIA convocava. Mais tarde furaram greves, alinharam com os gorilas que foram recrutados, ouviram os bons conselhosdos padrinhos que tinham no Governo. Mas hoje andam por aí armados em líderes e comentadores de sucesso, a gabar-se de um impoluto passado de democratas que não tiveram.

4 comentários:

  1. quem? quem são eles? diz-me, mesmo em off...

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  2. a carta não tem leitura, pá...

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  3. Digo, claro que digo. Até te mostro o que também eu encontrei no meu Dossier da Pide na Torre do Tombo. Um dia destes. Entretanto, podes adivinhar quem são alguns deles (dois pelo menos) pela leitura das "Cartas a Marcelo Caetano" que publicou o Freire Antunes há uns 20 anos. Não estás a ver? Estudantes de Direito que nos anos 60 se armavam de matracas para sabotar os plenários convocados pelas associações de estudantes à entrada da Cantina ou da Faculdade de Letras - isso só sabem os que estiveram lá. Já quanto aos tais que até davam razão aos colegas mas acabaram por se conformar com os conselhos dos padrinhos que tinham no Governo e furaram greves, dramáticas, para quem as fazia, que eram uns 90%.. aí, há indícios claros de quem foram nas "Cartas a Marcelo Caetano"...

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