sexta-feira, 30 de março de 2012

O discurso do Reitor, 50 anos depois da Crise

Em 62-65, a autonomia universitária era uma treta e o Reitor não se ensaiava nada de chamar a polícia de choque. Hoje, pelo menos, mudaram as fardas. E mudaram os sítios das cargas da polícia. E sobretudo mudaram os Reitores. A autonomia universitária é que continua uma treta. Como disse António Sampaio da Novoa, na recepção aos activistas de há 50 anos: "...Que autonomia é esta em que nos cortam as pernas,
todos os dias, com mais um decreto, com mais um despacho, com mais uma cativação, com cortes e mais
cortes, e quando já nos cortaram todas as pernas gritam candidamente: saltem, vocês são livres e autónomos,
saltem à vontade!? 
Foi um grande discurso, por onde passaram J. Guimarães Rosa, Antero de Quental (de 1862) e Eurico Figueiredo (de 1962), Chico Buarque de Holanda, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner, Zeca Afonso, Lope de Vega e Isabel a Católica. 

Foi um grande discurso a que os colegas da Imprensa não ligaram puto. Quiçá por ter sido demasiado rico de conteúdo, demasiado poético, demasiado contestatário... Como nós. Por isso os media instalados nos ignoram. Agora como há 50 anos, a luta continúa. O que disse o Reitor Nóvoa, naquele dia 24 de Março de 2012. Tudo isto:
Em si, as memórias de pouco servem. Talvez não sirvam mesmo para nada, porque “toda a saudade é uma espécie de velhice” (J. Guimarães Rosa). 
Mas conta – e muito – o que fazemos com as memórias, como as utilizamos para pensar e para agir, “para voltarmos a entrar na dança” como diz o Eurico de Figueiredo. 
Nada substitui a liberdade. Por ela se bateram em 1862, os estudantes de Coimbra que, animados por Antero, deram Vivas à Liberdade na Sala dos Capelos. Por ela se bateram, precisamente um século depois, em 1962, os estudantes aqui presentes e que constituem o orgulho maior da nossa Universidade.
Digo nossa, de Lisboa, porque a ligação que hoje estamos a construir entre as universidades “Clássica” e “Técnica” teve, na luta estudantil de 1962, um dos seus primeiros gestos e, logo, um dos mais nobres.
Há 50 anos, aqui fez-se liberdade, fez-se da Universidade um espaço de liberdade. Estes cem dias abalaram o regime e tornaram inevitável o que só seria possível doze anos mais tarde.
Começou aqui a nossa madrugada. Tanto mar. Por onde andam os cheirinhos de alecrim, pá?
Num certo sentido, num contexto histórico totalmente diferente, as nossas lutas são as mesmas de 1962. A luta pela liberdade e pela autonomia. Não a liberdade formal (essa é nossa e bem nossa), mas a liberdade e a autonomia como possibilidades, como realidades concretas.
Não quero exagerar (ouvem-nos todos os dias com as mesmas queixas e já devem estar cansados), mas que autonomia é esta em que nos cortam as pernas, todos os dias, com mais um decreto, com mais um despacho, com mais uma cativação, com cortes e mais cortes, e quando já nos cortaram todas as pernas gritam candidamente: saltem, vocês são livres e autónomos, saltem à vontade!?
 Num outro tempo, num outro contexto, a nossa luta é ainda a de 1962. Pela democratização do ensino. Hoje, quando tantos estudantes estão a abandonar a universidade por dificuldades económicas (e ainda há quem tenha o desplante de falar em aumento das propinas!), a questão está de novo na ordem do dia.
De uma outra maneira, claro. Mas com problemas que não se limitam à frequência dos estudos e que se prolongam pelas dificuldades de inserção na vida activa.
Como conseguir a democratização nesta “Pátria magra”, neste “pobre Portugal de pele e osso” (Miguel Torga)?
É preciso respirar indignação. É preciso que nos alimentemos das causas de 1962. E, por isso, é tão importante estar hoje, aqui, convosco.
 Para ver se é possível animar a malta. O Zeca morreu há 25 anos. Mas o Zeca não morreu.
Os que avançam de frente para o mar
 E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos.
Vivem de pouco pão e de luar. (Sophia)
No final do Centenário da Universidade, o Doutor Rui Vilar lembrou a sua passagem pelo CITAC e a peça de Lope de Vega sobre a viagem de Cristóvão Colombo:
Quando a corte dos reis católicos discutia a proposta do navegador, a única voz favorável foi a da Rainha que defendeu o audacioso projecto com uma fala que terminava assim: “Afastai do vosso palácio a prudência, essa conselheira dos maus reis (…) porque para aqueles que só fizerem o possível haverá no juízo final choro e ranger de dentes”. 
 Hoje, sabemos que não basta fazer o possível, um possível que parece reduzir-se a uma espécie de inevitabilidade, de fatalidade, de desânimo. Temos de ir além do possível e pensar outra vez o impossível. Inscrever este desejo, esta necessidade, no coração da nossa vida, no coração da Universidade.
Foi isso que aprendemos convosco. Foi a vossa luta pelo impossível que permitiu que tantos “possíveis” acontecessem.
É isso que vos queremos agradecer hoje.
A melhor maneira de o fazer, é dizendo-vos que a luta continua, mas desta vez com Reitores que não se demitem…