terça-feira, 6 de abril de 2010

Quando Eça denunciava comportamentos do clero

No tsunami que é exposição pública todos os dias de novos casos de encobrimento de casos continuados de pedofilia dos padres (devem ler-se os textos que estão a ser publicados na imprensa anglo-saxónica), o que mais choca é a dominação dos padres sobre as vítimas, as ameaças de excomunhão, as penas do inferno, para quem falasse, a quem quer que fosse, dos abusos sofridos.

Era a política oficial, a julgar pela declaração do Cardeal Saraiva Martins, antigo Prefeito da Causa dos Santos, que a roupa suja se lava em família. Sempre se soube e sempre a Igreja recuperou de algumas bruscas perdas de popularidade, de património, e de prestígio político.

Como recuperou, em Portugal, de retratos e denúncias como a do Crime do Padre Amaro, lembram-se? Uma das páginas mais interessantes do romance de Eça de Queiroz é aquela em que Amaro, receoso de algum eventual concorrente profano. ensina a Amélia como ser amada por um padre era o melhor que lhe podia ter acontecido:

Viera assim a ter um ódio a todo o mundo secular - que a poderia atrair, arrastar para fora da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a comunicação com a cidade. Convenceu mesmo a mãe que a não deixasse ir só à Arcada e às lojas. E não cessava de lhe representar os homens como monstros de impiedade, cobertos de pecados como duma crosta, estúpidos e falsos, votados ao Inferno! Contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de Leiria. Ela perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:

— Como sabes tu?

— Não te posso dizer, respondia com uma reticência, indicando que lhe fechava os lábios o segredo da confissão.

E ao mesmo tempo martelava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdócio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos compêndios, fazendo-lhe o elogio das funções da superioridade do padre. No Egito, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Pérsia, na Etiópia, um simples padre tinha o privilégio de destronar os reis, dispor das coroas! Onde havia uma autoridade igual à sua? Nem mesmo na corte do Céu. O padre era superior aos anjos e aos serafins - porque a eles não fora dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os pecados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ela um poder maior que ele, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à majestade de Nossa Senhora, ele podia dizer com S. Bernardino de Sena: "O sacerdote excede-te, ó mãe amada!" - porque, se a Virgem tinha encarnado Deus no seu castíssimo seio, fora só uma vez, e o padre, no santo sacrifício da missa, encarnava Deus todos os dias! E isto não era argúcia dele, todos os santos padres o admitiam...

— Hem, que te parece?

— Oh, filho! murmurava ela pasmada, desfalecida de voluptuosidade.

Então deslumbrava-se com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre "o Deus da Terra"; o eloquente S. Crisóstomo, que disse "que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus". E Santo Ambrósio que escreveu: "Entre a dignidade do rei e a dignidade do padre há maior diferença que a que existe entre o chumbo e o ouro!"

— E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?

Ela atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele o "ouro de Santo Ambrósio", o "embaixador de Deus", tudo o que na Terra havia mais alto e mais nobre, o ser que excede em graça os arcanjos!

Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influência da sua, voz - que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ela o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomá-la pela mão para a acompanhar e desfazer todas as dúvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do Céu; e que na sua sepultura, como sucedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos braços santos dum padre...

Isto encantava-a. Àquela idéia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, num antegosto de felicidades místicas, com suspirinhos de gozo. Afirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.

Amaro galhofava.

— A falar da morte, com essas carnezinhas...

Esta descrição do Eça, num livro que estava no Índice ─ Index Librorum Prohibitorum - quando o li, sempre me pareceu um exagero: como é que podia haver padres tão depravados? Afinal, por alguns depoimentos que vi e ouvi por aí, incluindo um das vítimas do Fundador dos Legionários de Cristo, amigo pessoal do Papa João Paulo II, esses padres existiram, existem, mesmo. Claro que há os negacionistas do envolvimento de pessoas da Igreja no encobrimento desses crimes. A sociedade civil é que não pode deixar-se intimidar.

Mas este é sobretudo um drama e uma questão de consciência que interpela os católicos, em especial, os que colocam os filhos em seminários e colégios internos, instituições que como agora se sabe atraem os pedófilos.

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